Rafael Galvão

Um pouco de nada, e nada de muito importante.

quarta-feira, fevereiro 25, 2004

Mamma África

         No começo de 2000 uma matéria na Veja me deixou ao mesmo tempo fascinado, curioso e estupefato.
         Ela contava que a Somália tinha, simplesmente, colapsado. Não havia mais Estado. O país tinha chegado à anarquia absoluta.
         Nos últimos dez anos a Somália tinha sido sinônimo de fome e de caos; era mais ou menos o tempo que se passou desde que perdeu seu governo central.
         A reportagem falava com pessimismo sobre sua situação. Nos últimos tempos pequenos enclaves de poder vinham se organizando dentro do seu território, onde clãs conseguiram se impor. Eram como pequenas cidades-estado -- que pouco a pouco iam se formando.
         E era isso que me maravilhava, me espantava e me deixava com a sensação de que sou testemunha de tempos maravilhosos.
         A África vem revelando tantas tragédias nos últimos anos que todo o mundo praticamente admite não saber se há uma solução possível. Aids, Ebola, guerra civil com requintes eventuais de canibalismo, tudo isso sai de lá. Mas a solução estava na cara de todos, e a reportagem não via isso.
         Qualquer pessoa sabe que a grande tragédia da África foi o colonialismo. A Europa dominou várias regiões e estabeleceu divisões administrativas a seu bel-prazer, pouco importando a história e as etnias daquela região. Como exemplo, em Ruanda juntaram tribos rivais que hoje se massacram mutuamente.
         Quando o modelo se esgotou e as colônias conseguiram sua independência, herdaram essas fronteiras e composições étnicas artificiais. Mais que isso, herdaram uma cultura que não era a sua. Não se respeitou o processo de formação histórica daqueles povos, que saltou etapas e pulou da Idade da Pedra para um regime democrático que eles não criaram nem jamais conseguiram assimilar totalmente.
         Ao descer ao fundo do poço, a Somália finalmente começava a arrumar a casa. Jogava para o alto toda a história da colonização e recomeçava do nada.
         Era um processo fascinante, com muitos pontos em comum com a formação dos Estados nacionais europeus após a queda do império romano: fracionamento da unidade original, formação de pequenos Estados de poder reduzido. Acima de tudo era um processo que poderia restaurar as configurações prováveis das nações africanas, retomando o curso da história de um continente que culturalmente ainda tem muito de pré-histórico. As nações que se formariam teriam assim uma base consensual e, finalmente, legítima.
         É um processo que se estendeu por mais de 1000 anos na Europa, mas que poderia se desenrolar em algumas décadas na Somália. Na sua desgraça, ela estava apontando o futuro.
         E foi ao notar isso que percebi a maravilha destes tempos em que vivemos. A multiplicidade de um mundo que pode ser tudo, menos um só.

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